O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência

O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência francesa


Autor: *Joaquim B. Barbosa Gomes
Data: 20/julho/96


Existiria, em princípio, alguma vinculação entre o conceito jurídico de ordem pública e o princípio de salvaguarda da dignidade da pessoa humana? Em que circunstâncias pode o Estado fazer uso do seu poder de polícia para, em nome da preservação da dignidade da pessoa humana, restringir o exercício, pelo cidadão, de alguns dos seus direitos fundamentais?



A resposta a estas e outras questões foi dada em recente decisão da Justiça administrativa francesa, lançada em processo que se singulariza pela natureza grotesca dos fatos que lhe são subjacentes e pela riqueza das reflexões jurídicas que enseja.



Os fatos, largamente debatidos nos meios de comunicação franceses, remontam a outubro de 1991. Uma conhecida empresa do ramo de entretenimento para jovens decidiu lançar, em algumas discotecas de cidades da região metropolitana de Paris e do interior, um inusitado certame conhecido como “arremesso de anão” (lancer de nain), consistente em transformar um indivíduo de pequena estatura (um anão) em projétil a ser arremessado pela platéia de um ponto a outro da casa de diversão.



Movido pela natural repugnância que uma iniciativa tão repulsiva provoca, o prefeito de uma das cidades (Morsang-sur-Orge) interditou o espetáculo, fazendo valer a sua condição de guardião da ordem pública na órbita municipal. Do ponto de vista legal, o ato de interdição teve como fundamento o Código dos Municípios, norma de âmbito nacional (a França é um país unitário) que disciplina de forma minuciosa o exercício da ação administrativa estatal no plano municipal. Nos termos desse Código (art. 131), incumbe ao Prefeito, sob o controle administrativo do representante do poder central na respectiva circunscrição (Préfet), o exercício do poder de polícia no Município, podendo intervir em atividades ou limitar o exercício de direitos sempre que necessário à preservação da ordem pública.



Por outro lado, a decisão administrativa do Prefeito se inspirou em uma norma de cunho supranacional, o art. 3º da Convenção Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.



Insatisfeita, a empresa interessada, em litisconsórcio ativo com o deficiente físico em causa, Sr. Wackenheim, ajuizou ação perante o Tribunal Administrativo de Versailles visando a anular o ato do prefeito.



Em primeira instância, os autores obtiveram êxito, já que a corte administrativa (na França, os órgãos jurisdicionais, mesmo em primeira instância, têm em regra a estrutura colegial) julgou procedente o “recours pour excès de pouvoir” por eles ajuizado e anulou o ato do Prefeito, entendendo que o espetáculo objeto da interdição não tinha, por si só, o condão de perturbar a “boa ordem, a tranquilidade ou a salubridade públicas”.



Mas, ao examinar o caso em grau de recurso, em outubro de 1995, o Conselho de Estado, órgão de cúpula da jurisdição administrativa, reformou a decisão do Tribunal Administrativo de Versailles, declarando que “o respeito à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da (noção de) ordem pública; (que) a autoridade investida do poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais específicas, interditar um espetáculo atentatório à dignidade da pessoa humana” (“Le respect de la dignité de la personne humaine est une des composantes de l?ordre public; que l?autorité investie de pouvoir de police municipale peut, même en l?absence de circonstances locales particulières, interdire une attraction qui porte atteinte à la dignité de la personne humaine”. V. RDP 1996/564)



Aparentemente circunscrita a um caso específico e inusitado, a decisão “Morsang-sur-Orge” veio, em realidade, trazer sensível modificação a uma antiga tradição jurisprudencial estabelecida na França nas primeiras décadas deste século. Por outro lado, ela amplia sobremaneira a base jurídica em que tradicionalmente se buscou a fundamentação para a ação do poder de polícia do Estado, agora reforçada com a inclusão de uma noção nova, inteiramente sintonizada com as correntes de pensamento jurídico em voga neste século. Ela traduz, também, a crescente influência exercida pela jurisdição constitucional e pela jurisdição de cunho internacional sobre a tradicional Justiça administrativa francesa, celebrada e copiada em diversos países mas historicamente impermeável às influências externas.



A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL



Vista sob o prisma do direito comparado, a reviravolta jurisprudencial operada no caso ora analisado é rica em ensinamentos. Ela mostra, de um lado, a rigidez principiológica em que se assenta a prática jurisdicional realizada pela Justiça especializada da França. De outro, revela mais uma vez o repúdio histórico do Conselho de Estado a mudanças jurisprudenciais abruptas, preferindo invariavelmente a evolução paulatina, anunciada em casos banais embora emblemáticos, e quase sempre através de decisões “de rejet”, isto é, recusando o pedido da parte autora. Foi o que ocorreu no caso “Morsang-sur-Orge”.



Com efeito, ao anular o ato do Prefeito, o órgão jurisdicional de primeiro grau nada mais fez do que aplicar ao caso uma antiga jurisprudência do próprio Conselho de Estado, à base da qual se encontra um julgado de referência (arrêt de principe= leading case) denominado “Benjamin”, de 1933, do qual a doutrina extraiu dois princípios cardeais do enquadramento jurídico da ação do poder de polícia. O primeiro desses princípios é o da excepcionalidade da intervenção do poder de polícia, resumida na formulação sintética: “la liberté est la règle, la restriction de police l?exception”. Foi à luz desse principio que se construiu a grande tradição liberal que marcou a Terceira e a Quarta Repúblicas francesas, notadamente em matéria de liberdade de reunião, de expressão, de costumes e até mesmo no campo do direito do trabalho (ex: anulação, não obstante expressa proibição legal da embriaguez no local de trabalho, de um dispositivo do regulamento interno de uma empresa privada que instituía, em caráter obrigatório, o exame “alcooltest” para os empregados). Foi ainda com base nesse princípio que se consolidou o entendimento, repetido em inúmeros acórdãos desde então, de que somente as circunstâncias excepcionalmente graves, suscetíveis de ensejar sérios distúrbios da ordem, podem justificar o cerceamento de alguma franquia ou liberdade fundamental.



Outro princípio extraído da jurisprudência tradicional diz respeito à natureza “material” do conceito de ordem pública, cuja preservação constitui objetivo essencial a ser alcançado mediante a ação restritiva do poder de polícia estatal. Em seu clássico “Précis de Droit administratif et de droit public” (Sirey, 12a ed., 1993), Maurice Hauriou estabeleceu com precisão a noção de ordem pública em matéria de polícia administrativa. Dizia ele: “L?ordre public, au sens de la police, est l?ordre matériel et extérieur”. Através dessa expressão lapidar, o que se queria dizer é que a interdição ou restrição ao exercício de direitos, sob pretexto de intervenção do poder de polícia para manter a ordem pública, só se justifica em casos excepcionais, em que seja manifesto o perigo de “desordem material”, isto é, de distúrbios externos. Com isso se excluía toda e qualquer apreciação de cunho “imaterial” ou “moral”. Noutras palavras, só é admissível a restrição a uma das liberdades fundamentais, tais como a de culto, de reunião ou de expressão, em casos de manifesto risco de tumulto decorrente do exercício da respectiva franquia constitucional. O que está em jogo, como se vê, não é o aspecto moral da manifestação em si mesma, mas as suas consequências externas.



Assim, a dissociação do conceito de ordem pública de toda e qualquer apreciação moralista permitiu à jurisdição administrativa francesa a construção de vasto acervo jurisprudencial no sentido da proteção dos direitos fundamentais. É sob os auspícios dessa concepção material de ordem pública, por exemplo, que se consolidou a interessante embora aparentemente ambígua jurisprudência em matéria de controle da difusão de obra cinematográfica, consistente em estabelecer o princípio geral da liberdade de difusão, admitindo-se porém a proibição, tão somente no plano municipal e em caráter excepcional, em casos em que fique claramente demonstrada a existência de circunstâncias peculiaríssimas de cunho local (ex: sensibilidade religiosa exacerbada de certas regiões; filmes que retratem episódios traumatizantes ocorridos em pequenas localidades), aptas a ensejar distúrbios da ordem pública. É também à luz dessa jurisprudência que se explica a peculiar liberalidade francesa em matéria de costumes, ilustrada, por exemplo, no fato de o Estado definir legalmente a prostituição e cobrar os respectivos impostos, ao mesmo tempo em que reprime severamente o proxenetismo.



Em resumo, segundo a jurisprudência e a doutrina tradicionais, o argumento de ordem moral, isoladamente, jamais foi suficiente para justificar a intervenção do poder de polícia, seja no domínio da liberdade individual, seja em matéria de costumes ou ainda no campo da liberdade de expressão. Sempre se exigiu uma rigorosa demonstração do risco de ocorrência de distúrbios de “ordem material”.



Essa concepção tradicional de ordem pública, porém, vem de ser modificada pela decisão ora comentada.



DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: NOVO COMPONENTE DA ORDEM PUBLICA



Com efeito, constitui consenso doutrinário, inclusive no Brasil, o entendimento de que o Estado detém o monopólio do poder de polícia administrativa, em nome do qual lhe é facultado condicionar ou limitar o exercício pelo indivíduo de algumas das franquias que lhe são outorgadas pela Constituição, tais como o direito de propriedade, a liberdade (de reunião, de iniciativa etc). O Professor René Chapus, em sua monumental obra Droit Administratif Général (Ed. Montchrestien, 1995), ensina que a polícia administrativa seria a “a atividade de serviço público tendente a assegurar a manutenção da ordem pública em diversos setores da vida social, prevenindo, na medida do possível, os distúrbios que poderiam atingi-la, ou, ao contrário, encerrando-os” (“l?activité de service public qui tend à assurer le maintien de l?ordre public dans les différents secteurs de la vie sociale et cela, autant que possible, en prévenant les troubles qui pourraient l?atteindre, sinon, en y mettant fin”). Esta é, de resto, mais ou menos a mesma conceituação prevalecente entre nós, traduzida na feliz definição de Maria S. di Pietro, para quem poder de polícia “é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”.



O campo de atuação tradicional do poder de polícia do Estado é vastíssimo. Engloba, entre outras atividades, o controle da circulação nas vias públicas, a vigilância sanitária exercida sobre o comércio de alimentos e medicamentos, a higiene dos logradouros públicos, o controle de epidemias etc. Contudo, as novas exigências da vida moderna, materializadas sobretudo no alargamento da ação legislativa a áreas outrora inexploradas tais como meio ambiente, a estética das cidades, a proteção do consumidor, conduziram à evolução do próprio conceito de ordem pública, ao qual vieram se agregar as noções de boa ordem, moralidade pública, salvaguarda de valores estéticos. Daí a proliferação de decisões judiciais interditando atividades ou o exercício de direitos por serem os mesmos atentatórios à tradição e ao bom gosto estético (interdição de painéis publicitários) ou às regras de proteção ambiental.



No direito público francês, o conceito jurídico de ordem pública coincide em linhas gerais com a concepção adotada entre nós, como já dito. Naquele país, no entanto, a obsessão pelas categorizações, aliada à coerência jurisprudencial resultante da existência de um sistema de contencioso administrativo bastante homogêneo, conduziu ao consenso, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, em torno do conceito de ordem pública, entendendo-se que a esse título o Estado pode cercear direitos individuais quando necessário à preservação, em uma determinada localidade, do sossego público (sûreté ou tranquillité publique), da segurança (sécurité) e da salubridade pública (salubrité publique). Esta é a doutrina clássica, alcunhada pelo Professor Chapus “la trilogie traditionnelle”. Paulatinamente, contudo, como já dito, foram sendo admitidos elementos de apreciação moral, desde que atrelados à noção de distúrbios materiais.



A decisão “Morsang-sur-Orge” vem se somar a essa evolução jurisprudencial, fazendo-o porém à luz de uma noção até então jamais utilizada como legitimação à ação do poder de polícia estatal.



Inovadora em sua concepção, esta decisão se notabiliza, à primeira vista, pela impossibilidade de uma avaliação exata do seu alcance, já que são inúmeros os direitos fundamentais suscetíveis de serem atingidos pelos seus efeitos. Por outro lado, ela é reveladora da cada vez mais crescente penetração das noções de interdisciplinaridade na prática jurisdicional moderna, do avanço do direito internacional, assim como do inegável florescimento da prática da jurisdição constitucional naquele País.



O ALCANCE DA DECISÃO



Essa decisão caracteriza, em primeiro lugar, uma limitação clara à liberdade individual e à liberdade de iniciativa, mais conhecida naquele país como “liberté du commerce et de l?industrie”. Note-se, com efeito, que os argumentos da pessoa física envolvida no caso eram em princípio irrespondíveis. Ele alegou, em seu arrazoado, que aderira “voluntariamente” ao programa, mediante remuneração. Logo, não havia por que dizer-se que aquela era uma atividade aviltante, pelo menos sob o ângulo da sua dignidade pessoal. Por outro lado, na condição de desempregado e ainda por cima inferiorizado no mercado de trabalho em razão da própria deficiência física, aquela atividade era para ele nada mais do que um meio de sobrevivência como outro qualquer. Proibi-lo de exercê-la significava, portanto, do seu ponto de vista pessoal, a privação do gozo de um direito inalienável: o direito ao trabalho. Razão pela qual ele argumentou, não sem trair uma fina ironia, que não há dignidade quando não se dispõe dos meios elementares de subsistência!



Da parte da empresa também eram relevantes o argumentos, na medida em que a atividade por ela patrocinada era lícita e conforme às normas de preservação da ordem pública, isto é, dela não resultava o risco de ocorrência de distúrbios de ordem material, sobretudo porque realizada em recinto fechado. Ademais, tratava-se de atividade semelhante a várias outras legalmente admitidas (ex: a exploração de anões em espetáculos circenses, na televisão etc)



O Conselho de Estado, porém, foi implacável, entendendo que, em si mesma, aquela atividade era atentatória à dignidade da pessoa humana, podendo a Administração proibi-la através de medida de polícia administrativa, pouco importando o fato de que o anão em causa aderira voluntariamente ao programa, frequentara cursos de treinamento para o espetáculo e tinha naquilo a sua única fonte de sustento.



Aí reside justamente outro aspecto inovador da decisão: tradicionalmente, o poder público usa o seu poder de polícia para cercear direitos ou proibir atividades, quase sempre com vistas a proteger o cidadão contra a ação abusiva de outros cidadãos e até mesmo da própria Administração. A decisão ora comentada consagra um novo tipo de intervenção do poder de polícia: a que visa a proteger o indivíduo contra si próprio, medida de polícia administrativa cuja motivação é semelhante àquela de onde são extraídas imposições tais como as que obrigam motociclistas e condutores de veículos a usar capacetes e cinto de segurança, protegendo-os contra a sua própria imprudência.



Ilustrativa da crescente interconexão dos diversos campos do Direito e da multiplicação das fontes em matéria de prática jurisdicional, a decisão “Morsang” exemplifica à perfeição a significativa importância que o direito supranacional vem assumindo nos dias atuais, a ponto de uma ordem jurisdicional tão singular como a a Jurisdição administrativa francesa, historicamente avessa às soluções jurídicas estranhas aos princípios por ela própria concebidos, tenha se haurido, embora sem dizê-lo formalmente, em precedentes emanados de órgãos políticos e jurisdicionais de competência supranacional. Com efeito, até o advento da decisão aqui comentada, o princípio da dignidade da pessoa humana, tal como previsto na Convenção Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem, só era invocado no campo do direito penal e da bio-ética. De fato, é com base nesse princípio que a Corte e a Comissão Européia de Direitos Humanos têm proferido condenações, em razão da existência, nos ordenamentos jurídicos de alguns Estados, inclusive da França, de penas degradantes e/ou excessivas, bem como pela subsistência de condições prisionais tidas como sub-humanas. Também com base nesse princípio, algumas nações vêm sendo lançadas ao opróbio por permitirem, ou mesmo por se omitirem, com relação à realização em seu solo de práticas médicas ou científicas levadas a efeito sem o conhecimento das pessoas interessadas.



Quanto à definição do tratamento degradante, entende-se no âmbito da referida Convenção européia que é aquele “que humilha grosseiramente o individuo diante de outrem ou o leva a agir contra a sua vontade ou sua consciência (Caso “Tyrer” da Corte Européia de Direitos Humanos ). Noutras palavras, tratamento degradante é o que “pressupõe medidas suscetíveis de criar no indivíduo a sensação de medo, de angústia e de inferioridade, própria a humilhá-lo, a aviltá-lo e a privá-lo eventualmente da resistência física ou moral”. Daí se concluir que o tratamento degradante seria, em princípio, de ordem subjetiva, só podendo ser invocado caso a pessoa que o sofra julgue oportuno. A Corte européia, entretanto, já teve oportunidade de declarar que há tratamento degradante quando uma ação provoca um abaixamento na posição ou na situação de alguém, causando-lhe queda na reputação, seja sob a ótica da pessoa objeto da ação, seja na visão “de outrem”. Eis aí o reforço da ação protetora inserida em atos de natureza internacional, que cada vez mais contemplam cláusulas de proteção de direitos humanos. Em geral, tais cláusulas são concebidas para proteger o cidadão contra as arbitrariedades dos seus Estados nacionais ou de terceitos Estados. Aqui, no caso, o Estado se vale da convenção internacional para proteger o cidadão contra ele próprio., estipulando a regra da irrenunciabilidade de certos direitos tais como os que proibem o individuo de se submeter a tratamentos degradantes, ainda que bem remunerados.



A decisão comentada, como se vê, longe de se confinar ao domínio clássico do direito administrativo, é tributária do direito internacional, se inspira largamente na cada vez mais difundida doutrina da proteção dos direitos humanos, sem contar a repercussão quase certa que terá no campo da bio-ética. Sua importância, do ponto de vista do direito comparado, é certamente inestimável.



Alguns poderão, entretanto, indagar: e o direito constitucional?



Com efeito, ao jurista brasileiro certamente haverá de causar estranheza o fato de que uma decisão dessa natureza tenha sido proferida sem que, em nenhum momento, em sua fundamentação, se tenha feito alusão à Constituição do país. A chave para esse enigma, contudo, está nas peculiaridades do direito público francês, especialmente no sistema de controle de constitucionalidade adotado naquele país. Sabe-se, com efeito, que a Constituição francesa de 1958 é, além de rígida, bastante sucinta. O seu texto, isoladamente considerado, certamente não oferece base segura para uma construção jurisdicional tal como a que vimos de expor. Acontece que, tendo a Constituição instituído um sistema de controle de constitucionalidade pouco propício à chicana processual tão ao gosto do jurista latino, o órgão incumbido desse controle, o Conselho Constitucional, tem-se empenhado numa prática jurisdicional calcada em princípios, muitos dos quais de natureza supraconstitucional e remontando a tempos imemoriais. Disso resulta que, não raro, a lei é declarada inconstitucional não por afrontar um dispositivo expresso da Constituição em vigor mas por ser contrária a um princípio inserido no Preâmbulo da Constituição de 1946 ou na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em…..1789.



A decisão aqui comentada, embora silente a esse respeito, é tributária desse sistema de controle de constitucionalidade, já que, em 1994, o Conselho Constitucional decidiu, ao examinar a arguição de inconstitucionalidade de uma lei versando sobre doação e utilização de elementos e partes do corpo humano, “elevar” o princípio da dignidade da pessoa humana ao status de “principe à valeur constitutionnelle”. E o fez valendo-se não de uma disposição da Constituição em vigor mas de uma declaração de princípios inserida na Constituição do pós-guerra (1946), cujo teor é o seguinte: “Ao amanhecer da vitória conquistada pelos povos livres sobre os regimes que tentaram avassalar e degradar a pessoa humana, o povo francês proclama mais uma vez que todo ser humano, sem distinção de raça, de religião nem de crença, possui direitos inalienáveis e sagrados” (“Au lendemain de la victoire remportée par les peuples libres sur les régimes qui ont tenté d?asservir et de dégrader la personne humaine, le peuple français proclame à nouveau que tout être humain, sans distinction de race, de religion, ni de croyance, possède des droits inaliènables et sacrés”).



*O autor é Doutor em Direito Público pela Universidade de Paris-II. Autor do livro “La Cour Suprême dans le Système Politique Brésilien”, ed. LGDJ, Paris, 1994, Professor de Direito Constitucional e Procurador da República no Rio de Janeiro.

Notícias Recentes:

Projeto de Integração Regional da ocorrerá amanhã em Joaçaba
ACORS, ADEPOL-SC e SINPOSC na luta pela valorização dos integrantes da Segurança Pública do Estado
Comissão Eleitoral apresenta chapas concorrentes à Diretoria Executiva e Conselho Fiscal
ACORS se reúne com a presidência do IPREV para tratar do SPSM