Entrevista Cap Rodrigo – PMERJ

Entrevista Cap Rodrigo – PMERJ


 O Oficial em tela é aquele Capitão que deu uma entrevista no Fantástico logo após o caso do ônibus em que a professora foi morta com um tiro, quando estava saindo do ônibus em poder do bandido…


 1º Ten PM Carpes


GRAER


 O que levou o senhor a pedir baixa da Polícia Militar?
Capitão Rodrigo – Eu estava cada vez mais incompatibilizado com a forma como é conduzida a segurança pública no Rio. Os problemas são fáceis de se resolver, mas nada muda. Se você fizer um paralelo entre a política de segurança pública do governo atual e a do anterior, vai ver que nada mudou. A política continua sendo mensurada por estatísticas. Mensalmente, os comandantes de batalhão são cobrados. Quantas armas o batalhão apreendeu esse mês? Quantos quilos de maconha o batalhão apreendeu esse mês? O comandante que não atingir certos parâmetros, perde o comando do batalhão. Essa política de cobrança de estatísticas estimula o confronto.


 Quem estimula isso?
CR – O coronel Josias Quintal, secretário de Segurança Pública. Ele que cobra da polícia essas estatísticas. Mas porque isso não é razoável? A função da Polícia Militar é a de preservação da ordem pública, é uma polícia preventiva. Se você estiver com policiamento ostensivo na rua, o número de armas apreendidas vai cair, porque vai diminuir o número de assaltos e logicamente vai cair o número de confrontos.  


É verdade que desde o lançamento do filme Notícias de Uma Guerra Particular, o senhor vem sofrendo perseguições?
CR – Primeiro eu fui proibido de participar do lançamento do vídeo em São Paulo. A ordem veio do comando da Polícia Militar. O chefe do estado maior, atual comandante geral da PM, coronel Wilton Soares Ribeiro, viu o filme e me proibiu de participar do lançamento. Não aceitei a proibição e fui lá assim mesmo. Meus superiores ficaram espantados com a tônica da minha crítica. Segundo eles, eu teria tocado em assuntos delicados da política de segurança pública.


 O que incomodou tanto o comando da PM?
CR – Foi a frustração de um oficial da polícia em participar daquela política de operação em favelas. Veja bem, eu não sou contra essas operações, desde que você tenha um objetivo razoável a ser alcançado: você saiba onde tem um cativeiro, uma casa de endolação (onde são feitas as trouxinhas de maconha), você saiba onde está um traficante conhecido da justiça. Agora, operação meramente para ir na favela, buscar o confronto com o marginal, acho que isso não é segurança pública. Isso causa um transtorno para a população e para o policial. E na época do governo Marcello Alencar, a política era a do confronto. A tua missão era buscar o confronto na favela custasse o que custasse. Seja a vida de policiais, de inocentes ou de marginais. 


Qual foi a primeira reação do comando?
CR – O coronel Wilton Ribeiro, ex-chefe do estado maior e atual comandante-geral da PM me chamou para conversar sobre o filme. Lamentou  que não tivesse deixado eu ir ao MIS, mas me disse que no filme estariam pessoas da mídia, sociólogos. Que estaria na mesa o deputado Hélio Luz, o ouvidor geral da polícia de São Paulo e o Rubem César, do Viva Rio. Toda a preocupação do coronel era com o Rubem Cesar. Ele temia que ele me deixasse em xeque na mesa. Mas ele não ia fazer isso, porque tudo o que ele falasse, eu iria concordar (risos). Então ele lamentou que eu tenha decidido ir e falou que aquilo era para preservar a corporação desses sociólogos.


 Quando começaram as represálias?
CR – Em novembro, depois que eu dei uma entrevista para o Jornal do Brasil. Me mandaram para o DGP (Diretoria Geral de Pessoal), que a gente chama de geladeira. Você recebe o salário mas fica em casa sem fazer nada. Depois de um tempo na geladeira, o professor Luiz Eduardo me convidou para trabalhar com ele.


 Houve resistência do comando da PM?
CR – Houve. O coronel Josias Quintal achava que eu devia ser punido pelo que disse ao Jornal do Brasil e não ser premiado indo trabalhar com o Luiz Eduardo. Se me permite, queria dizer que considero o professor Luiz Eduardo Soares a pessoa que mais entende de segurança pública no Brasil. Me envergonha como policial dizer que um antropólogo sabe mais de segurança que um delegado, que um coronel. Mas sabe. Eu acho que a essência do trabalho da polícia não está na polícia, está na sociologia.


 O senhor estabeleceu laços muito fortes com ele, não?
CR – Sim, principalmente depois que ele deixou o governo e passou a ser seguido. Um casal de colaboradores dele chegou a ser seguido e ameaçado dentro de um shopping center. O mesmo casal que providenciou a saída dele do Brasil. Eles estavam fazendo compras quando perceberam que alguém estava atrás deles. Me ligaram pedindo segurança. Quando cheguei no shopping, encontrei a mulher num salão de cabelereiro. Ela me apontou um homem encostado em frente ao salão. Ele já esbarrara neles várias vezes com o intuito de intimidá-los. Abordei o sujeito e perguntei o que ele estava fazendo ali. Me disse que era policial e tinha pinta de policial mesmo. Disse que era policial também e que estava com aquela senhora, perguntando o que ele queria com ela. Ele disse que não queria nada e foi embora.


 Qual era exatamente a sua função na Coordenadoria de Direitos Humanos?
CR – Eu era assessor. Ajudava na elaboração de um projeto de apoio psicológico aos policiais que até hoje não existe. Isso efetivamente só ocorreu no 9º Batalhão da Polícia Militar. Era para se expandir para todos os batalhões, mas o projeto foi abandonado. Não tem polícia no mundo que não tenha um serviço de apoio psicológico. Mas no Rio o policial vai numa operação, mata dez marginais e volta para o serviço. Muitos já se transformaram em sádicos. Em São Paulo, o policial que participa de uma troca de tiros tem um acompanhamento que dura 60 dias. No Rio não há nada disso.


 Mas existe um serviço mais ou menos assim no Hospital da PM, não?
 CR – Só que o policial tem que ter iniciativa de procurar. Não existe uma tentativa de trazê-lo para isso. No Rio, acham que policial que procura psicólogo é maluco. Dizem que não é coisa de militar. Uma vez eu participei de uma operação em 1994, onde quatro marginais foram mortos. Para você entender, um tiro de fuzil quando pega num braço, o membro sai. No rosto, arranca metade da cabeça. Um dos marginais perdeu o queixo, mas continuou vivo. Passados duas semanas da operação, eu continuava sonhando com aquelas cenas. Sete meses depois fomos premiados por aquela ação. Éramos sete policiais naquela operação e cinco carregavam péssimas lembranças daquilo.


 A sua situação na PM começou a ficar mais complicada após o seqüestro do 174, não?
CR – Depois que eu dei entrevistas sobre o fatídico caso 174 me mandaram para o 16º BPM (Bonsucesso), o pior batalhão da PM. Me perguntaram para onde eu queria ir. Respondi que para qualquer um, menos o 16º. Foi justamente para onde me mandaram. Claro que foi um castigo. Fui mandado para lá por ordem direta do coronel Wilton Ribeiro. Por sinal, deixa eu contar o que aconteceu no 174. Nós, oficiais do Bope, nos especializamos nos EUA e em Israel com dinheiro próprio. Você ganha um dinheiro de bico e pede autorização para fazer um curso na SWAT de Nova York, por exemplo.


 São os policiais que tomam a iniciativa? Esses treinamentos não são convênios firmados entre as polícias?
CR – É tudo com a gente. Nós íamos nas embaixadas falar com os adidos policiais, fazíamos contato via internet com os departamentos de polícia. O comando entrava com a boa vontade de nos liberar do serviço. Quase a totalidade dos oficiais do Bope tinha formação nas escolas americanas e européias de negociação de conflitos. No dia em que ocorreu o 174, eu estava no gabinete do coronel Wilton Ribeiro acompanhando tudo pela televisão, enquanto o coronel Wilton falava com o coronel Penteado pelo telefone. No Bope, tínhamos quatro oficiais habilitados para fazer tiro de sniper (disparo de atiradores de elite). Nenhum deles estava no local naquele momento. 


Mas havia homens do Bope no local com fuzis de mira telescópica.
CR – Mas não estavam habilitados para isso. Tiro de sniper é uma coisa muito séria. Tem mil fatores que influenciam o disparo. Eu falei com o coronel, mas ele me disse que o governador havia determinado que não fosse dado o tiro de sniper. Ele havia colocado para o governador quais eram as possibilidades, e o Garotinho disse que queria o marginal vivo. Eu também queria, todo mundo queria. Então eu disse para o coronel que ele precisava explicar para o governador que aquilo não era tecnicamente o mais viável, o mais correto a ser feito.


Mas esse tiro era para ser dado em ultima instância, não? Para não colocar em risco a vida dos reféns?
CR – Mas a vida dos reféns estava em risco subjetivo. Nós sabíamos que a menina não estava morta. A outra menina, muito inteligente, conseguiu sinalizar para gente que a outra estava viva. Todos os policiais que ali estavam sabiam que a refém estava viva.


 Como está o Marcelo Santos (o policial do Bope que errou o tiro a meio metro do seqüestrador Sandro, e que causou a morte da refém)?
CR – Ele está trabalhando no Bope, em serviços internos. Ele está legal, a cabeça dele está legal. Ele não foi nem denunciado pelo Ministério Público.


 Afinal, naquele episódio, ele tinha ordens para fazer o que fez? Ou ele mesmo tomou aquela iniciativa?
CR – A delegada Marta Rocha chegou à seguinte conclusão no inquérito: ele agiu sob ordem. Eu tenho muita mágoa porque a polícia ainda não fez um estudo de caso daquela situação. Se aquilo acontecesse hoje, passados oito meses, o resultado seria igual. Por que que eu digo isso? Ninguém sabe até hoje porque aquilo deu errado. Falta de comando? Falta de unidade de comando? Falta de gerenciamento? Errou porque o coronel não estava habilitado para gerenciar? Tudo bem, mas formou-se coronéis habilitados para gerenciar aquela situação? O coronel Penteado não tinha curso de gerenciamento coisa nenhuma. Nem cursado em operações especiais ele era.


 Mas disseram que o Bope ia ser retreinado, iriam comprar fuzis novos para os snipers?
CR – Compraram fuzis M 16, mas não são armas próprias para sniper. A PM prometeu comprar fuzis Remington para o Bope mas os fuzis não estão aí até hoje. O Bope tem seis fuzis HK próprios para snipers, mas todos estão sucateados e velhos. Tem mais de 20 anos de uso e estão com fungos.


 Afinal, porque não se tentou então o tiro de sniper?
CR – A verdade é o seguinte: o coronel Penteado bancou uma ordem do governador e não falou para ninguém. Eu entendo que tenha havido um acordo de cavalheiros ali. Porque se o Penteado chega na televisão e diz erramos sim. Mas erramos porque o governador não deixou a gente atirar. Porque a gente queria atirar. Aí a situação ia ficar muito ruim para o Garotinho. Acho que houve um acordo. Porque o Penteado protegeu o governador mesmo. Ele nunca disse que o governador havia ligado para ele. Eu não estava na hora, mas todos os oficiais que estavam presentes disseram que o governador ligou mais de uma vez para perguntar o que ele ia fazer, para dar sugestões.


 Mas o governador admitiu que dera a ordem para não atirar.
CR – Olha, sobre essa ordem é o seguinte: existem quatro situações para ocorrências com refém. Primeira coisa: espere ou negocie, é a primeira alternativa tática. Segunda alternativa: agentes químicos (ACS, ACN, gás pimenta), mas o pouco que a gente tem é só para jogar no leilão da Telebrás. Terceira alternativa tática: o sniper. Se não der para usar o sniper, parte para o assalto, que foi o que o Marcelo Santos fez. Mas o assalto é, das quatro, a alternativa menos precisa, mais vulnerável e perigosa. O sniper substituiria aquela ação desastrosa, ridícula do Marcelo Santos. Agora, tinha sniper ali? Não tinha sniper. Tinha fuzis apropriados para isso ali? Tinha, mas os fuzis estavam sucateados e velhos. Dava para a gente fazer mesmo assim com um fuzil daqueles? Dava, não ia ser tão preciso, mas dava. Um tiro de fuzil tem condição de matar um marginal em sete milésimos de segundo. Não dá um décimo de segundo, não dá tempo de um espasmo muscular.. Se ele estivesse com o dedo no gatilho, apontando para a menina, ele ia morrer sem apertar o gatilho. No Rio de Janeiro a gente nunca fez um tiro assim, na cabeça. Em São Paulo eu sei que já fizeram. Enfim, a situação ali era mesmo para o tiro certeiro. Eu gostaria que o marginal saísse vivo, ainda mais porque o capitao Batista disse para mim depois que ele pediu emprego. 


Como assim, pediu emprego? Ele não pediu uma pistola, duas granadas e mil reais?
CR – O capitão Batista ligou e disse pra mim: Pimentel, o coronel Penteado está pondo os pés pelas mãos, está dando tudo errado por aqui. Pede para o coronel Wilton tirar o coronel Penteado daqui. Nunca um coronel iria mandar outro coronel sair de lá. O capitão havia previsto que aquilo estava tomando uma linha desastrosa. Tudo errado. Duas pessoas negociando, o marginal com total liberdade.
Detalhe: o Penteado é gago. Já falou com gago nervoso? Não sai nada. E ele ainda tem tique nervoso, que todos vocês viram na televisão. Além disso, ele não sabe blefar. É uma pessoa muito militar. E o blefe faz parte dessas negociações. E o marginal pediu em-pre-go. 
Qual é a boa estratégia de negociação? Você diz para o marginal que até aquele momento ele não cometeu qualquer crime grave, que não matou ninguém e que aquilo tudo vai dar uns dois anos de cadeia, com direito a sursis e coisa e tal. Não deixa de ser verdade, né? O marginal pediu emprego para o Coronel Penteado e isso nunca foi noticiado. O capitão Batista ficava dizendo que ia tentar arrumar alguma coisa, mas o Penteado dizia que não tinha jeito, que ele tinha que ser preso. O Batista vai sair da polícia qualquer dia. Ele é excelente aluno de Direito da PUC, vai passar num concurso e largar a policia. 
Aliás, tive uma discussão uma vez com a Clarissa, filha do governador (Anthony) Garotinho, quando ela estudava Direito na Cândido Mendes. Eu tinha ido falar do filme do João e não sabia que ela estava no auditório. Um aluno me perguntou o que eu achava da liberação das drogas. Eu disse que preferia não expor minha posição pessoal porque falaria por mim, não pelo capitão da polícia, não pela polícia e muito menos pelo professor Luiz Eduardo.
Mas ele insistiu e eu acabei dizendo que acho que tem que liberar mesmo. Morre muita gente à toa.
Depois a Clarissa me abordou na saída da faculdade e disse que eu não deveria ter falado sobre liberação de drogas. Cabeça pequenininha, sabe? Menina educada, fala muito bem e bonita, muito bonita. Tomou uma vaia naquele dia quando disse que era filha do governador, mas respondeu com um discurso que foi até bem aplaudido. 


Como foi a sua transferência para o 16º Batalhão?
CR – Tem um história curiosa. Uma vez eu estava fazendo uma escolta para o Uê, que ia num depoimento. No meio do caminho ele me perguntou se eu havia participado de uma determinada operação no Morro do Cruzeiro, no Complexo do Alemão. Eu falei que estava, mas não estava não. Queria saber o que ia sair dali. Aí ele falou: Vem cá, naquele dia vocês tinham cheirado uma cocaína, né? Porque a gente atirava, atirava e atirava em vocês e vocês continuavam subindo o morro. Que coisa de louco. Mas aí eu fui para o 16º BPM. Nossa….você vê, ou melhor você não vê porque eles não fazem na sua frente porque sabiam que eu era o capitão Pimentel, do Bope. Mas a gente ouve relatos de todo o tipo de mineira, extorsão, corrupção. Se eu ficasse lá mais tempo, com certeza ia ter assédio. No Bope eu fiquei preservado disso aí.  


Porque o senhor tinha tanto pavor de ir para o 16° Batalhão?
CR – Porque o 16º era tudo aquilo que eu não queria. Eu queria ficarlonge de favela. Longe de operação policial com confronto. Mas aconteceu. Eu fui uma vez ao Complexo à tarde, eu e mais cinco policiais, e achamos um carro abandonado, um Megane. Comunicamos ao comandante e dissemos que íamos deixar o carro ali e iríamos buscá-lo no dia seguinte. Mas o coronel insistiu que tínhamos que tirar o carro de qualquer jeito. Argumentei que ia levar umas duas horas para chegar um reboque, e como estávamos em julho, já anoitecia por volta das 18h, quando a favela já era dos marginais. Mas o coronel disse para eu não me preocupar porque ia para o local com mais cinco policiais de  reforço. Ao chegar lá, ele mandou que eu descesse com meus homens levando o carro no reboque. Pimentel, vou ficar nesse platô te protegendo, quando você chegar lá embaixo, protege nossa descida. Cumpri a ordem. Quando estava descendo, meu celular tocou e um soldado me avisou que estávamos cercados por mais de 20 marginais. Perguntei o que eu deveria fazer, porque não tinha experiência daquela favela. Capitão, é melhor o senhor abrigar e esperar acontecer, respondeu o soldado.
Eu olhei para o sargento – a gente escuta historias do 16º BPM onde alguns policiais são envolvidos com o tráfico – e perguntei se tem algum policial envolvido, por favor se acuse e avise aos marginais que só queremos tirar o carro daqui, não queremos mais nada. Um soldado virou-se e respondeu: olha capitão, nessa rua aqui eu não conheço ninguém, mas se a gente fosse por aquela rua de lá, pela outra boca de fumo, até dava para negociar. E os marginais se aproximando da gente, todos de fuzil Colt e M 16 nas mãos. 


O que os senhores fizeram?
CR – Estávamos desembarcados, que eu não sou louco de descer embarcado, fazendo uma proteção lateral ao reboque. Eu estava com cinco policiais incluindo o reboquista, que era um sargento já bem idoso. Eu estava completamente cercado e com medo que algum dos homens atirasse primeiro. Meu celular tocava e os companheiros que estavam em cima diziam que estávamos muito mal parados. Nisso um dos meus homens atirou num marginal. Em menos de dois minutos de troca de tiros, meu cabo que estava atrás de mim, o cabo Nobre, morreu. Tomou um tiro no pescoço e caiu morto. Mas eu ouvi ele gritar com voz forte: eu tô pegado. Pegado é uma gíria que os marginais usam, e a polícia adotou, que quer dizer que você foi baleado. Quando eu olhei para trás, o Nobre estava no chão, cheio de sangue em volta. Pela quantidade de sangue vi que ele tinha partido desta para melhor. Outro companheiro quis puxá-lo para um abrigo, mas confesso que estava com muito medo de sair de onde eu estava. Eu tinha me abrigado atrás de um poste, que estava esfarelando com os tiros mas estava me protegendo. Eu não fui, mas meu companheiro foi até lá e puxou o corpo. Lamento muito por não ter ido. Chorei durante dias por causa disso. Porque não era o momento ideal para mostrar covardia, era para mostrar o máximo de coragem e liderança possível. Um pastor evangélico ajudou meu amigo e puxou o Nobre para dentro da Igreja. Ele estava num lugar de ângulo melhor e mandou a gente ficar onde estava. Quando os marginais viram que o Nobre havia morrido, pararam de atirar.
Pedi pro reboquista ligar o carro para que a gente pulasse para dentro do reboque e fugisse da favela. Com meu telefone, liguei para o chefe de perações da PM. Por sinal, é proibido usar celular em operações. Eles acham que o policial vai usar pra fazer mineira, coisas assim. Mas nesse dia se a gente não tivesse com celular, a gente morria. Você sabe que a PM não tem rádio.  


O tempo todo então o senhor estava usando o seu aparelho particular?
CR – Sim, o que eu pago a conta. Avisei ao chefe que estávamos cercados
e que havia um policial baleado. Nisso, um soldado meu sacou uma granada de estilhaços (não sei onde ele arrumou, com certeza apreendeu de algum traficante). O policial subiu na igreja e disse: Vou jogar essa granada no beco e dar uns tiros naquela direção, depois nós aproveitamos a oportunidade para fugir.  


Mas isso é um procedimento típico de guerra, não? 
CR – Exatamente. É o chamado tiro de saturação. A gente atira para um lado qualquer e sai dali. O policial fez isso e nos saímos no reboque.
Quando chegamos no asfalto, tinha mais de cem policiais lá embaixo. Mas eles não subiram para ajudar a gente, ficaram com medo. Os cinco que estavam lá em cima também não desceram para me ajudar. Depois que todo mundo soube que um policial havia morrido, virou pessoal, surgiram uns 40 que queriam subir para vingar o companheiro. Resolvi não participar, estava muito abalado pelo que havia acontecido, foi um volume de fogo sem igual. Quando eu estava descendo, tivemos que nos abrigar perto de uma birosca e, no meio dos tiros, olhei para dentro e vi que estava passando um jornal na televisão, com a notícia: tiroteio intenso no Complexo do Alemão, policial baleado e outro cercado no alto do morro. Dizem nossos informantes que depois da notícia na TV, os marginais reduziram o ímpeto. Dias depois o comandante geral esteve no 16 BPM e me perguntou o que havia acontecido. Disse que ocorrera o de sempre: uma operação à noite, dentro da favela, sem armamento adequado – todos os nossos armamentos falharam.  


Qual era o armamento exatamente? 
CR – FAL. Mas nossos FAL foram fabricados em 1962, início da época FAL. São fuzis com quatro décadas de uso. Todos os fuzis falharam, todos os meus policiais estavam sem coletes, nenhum deles tinha rádio portátil.
Estava tudo errado. Não havia a menor chance de aquilo dar certo.

Mas ao menos a ordem para descer com o carro naquele momento foi  correta? 
CR – De jeito nenhum. Eu questionei o Coronel Davi, comandante da unidade, a respeito de dormirmos ali em cima para descer de manhã. Os policiais todos me pressionavam nesse aspecto. Mas nós temos medo de acharem que somos medrosos. Acho que se eu tivesse insistido mais, ele cederia. Era um capitão e dois sargentos falando. Dava para nos protegermos lá em cima, estávamos num lugar muito alto. Eu falei para o comandante que aquele carro ia custar a vida de um policial. O Nobre tinha se divorciado da esposa há cinco anos. E  xatamente naquele dia tinha voltado com ela. Ele trabalhava interno no 16º. Mas quis trabalhar comigo porque me achou bacana e eu já havia trabalhado com dois irmãos dele, sargentos do Bope. Deixou um filho que está com seis anos de idade. Eu dei a notícia para a família, que tinha ouvido a história no rádio. Quando cheguei no Batalhão o pai dele me ligou perguntando se era verdade. Pior que perder um companheiro numa operação é avisar a família. Eu já tinha tido essa experiência umas quatro vezes no Bope. Tentei fugir do telefone, mas naquele dia eu era oficial de dia do batalhão e tive que providenciar tudo.  


Depois a polícia subiu para se vingar, certo? Não subiram para fazer nenhuma operação. Não houve um erro de comando aí? 
CR – Lógico, e eu compartilho desse erro. O saldo dessa operação foi o seguinte: um carro recuperado, um cabo PM morto e quatro civis baleados. Depois quiseram que eu dissesse que um desses rapazes era traficante. Fui até o hospital conferir, mas constatei que ele não era.
Isso para mim é um desfecho típico de operação policial. E você pergunta, valeu a pena? Se tivéssemos matado 10 marginais, teria valido a pena? Ferimos quatro moradores e um pai de família morreu. Valeria a pena? Operação policial em favela é um risco muito grande para a população. Um fuzil FAL perfura uma parede de tijolos e mata todo mundo que estiver dentro da casa. Nossa função é dar proteção para a população, não é pegar marginal. Senão seríamos da Secretaria de Combate ao Crime, mas somos Secretaria de Segurança Pública. Um exemplo é o trabalho que está sendo feito no Pavão/Pavãozinho. O comandante sabe que não está ali para prender marginal, mas para levar segurança para a comunidade. 


Como esse episódio mudou sua trajetória?
CR – Bem, depois da morte desse policial do 16º BPM, procurei o comandante e disse que não tinha ambiente para continuar no batalhão porque me julgava responsável pela morte do policial. Então me transferiram para o 2º BPM, onde assumi a seção de apurações de delitos policiais. É um local interessante porque ali você vê a quantas anda a credibilidade da PM perante a população: é péssima. São duas queixas por dia, o que é demais. Infelizmente você não consegue ter uma apuração boa porque a população vai lá, se queixa de violência policial e da extorsão, mas não dá continuidade às denúncias. 
Deixa eu colocar uma questão importante. O Garotinho está divulgando amplamente que abriu sete mil novas vagas para a polícia. Mas o salário que o Garotinho oferece na Nova Polícia é o mesmo da Velha Polícia: R$ 400 e poucos para um soldado. Então, quem quer ganhar 400 por mês hoje?
Quem é marginal e quer uma carteira de PM e um revólver. 
Você vai entender porque eu disse isso. Uma vez, um policial em Niterói teve o carro e a arma roubados na praia por quatro alunos do curso de soldados do 23º Batalhão. Eu estava entrando no quartel com um cidadão que queria fazer uma denúncia de extorsão, quando um oficial se aproximou e me contou a história. Imagine a cara de um civil, que se dispõe a denunciar um policial por extorsão, e ao entrar num quartel ouve que um policial fora assaltado naquele dia por quatro outros policiais. Ele desistiu do depoimento na mesma hora.  


Quem é o campeão de queixas? 
CR – A Zona Sul, e a maioria das queixas são por extorsão. Fiz amizade uma vez com o adido policial do consulado da Itália no Rio. Um capitão da polícia de lá. Ele me garantiu que a polícia italiana era muito mais corrupta que a nossa. Perguntei, como assim? E ele respondeu é que lá a polícia é corrupta, mas a população anda sempre certa, você não consegue tirar um centavo de um cidadão italiano. Você pára o carro e ele está documentado, o cara não anda sem carteira….e aqui no Brasil, eu não agüento mais. No começo eu nem dormia, chegava em casa com raiva. Minha esposa tem um grupo de amigos com quem saímos, vamos a festas – amigos diferentes do meu relacionamento de polícia – e eu volta e meia ouço alguém falar que deu dinheiro para algum policial. Em 100% das festas que eu vou ouço histórias assim.  


Falando em casos de extorsão e corrupção policial, as blitzes que volta e meia tomam conta da cidade são eficazes? 
CR – Nem um pouco, elas só são eficazes para o policial arrumar dinheiro. Nós tentamos fazer uma estratégia de supervisão nas blitzes, mas você não tem oficial para isso na PM. A idéia da blitz é criar visibilidade, marketing. É você poder ver a polícia na rua trabalhando. Mas a blitz não te traz resultado palpável. E eles gostam de resultado palpável. Gostam de ver cocaína apreendida, armas apreendidas. Um amigo meu foi parado outro dia e estava só com a carteira dos Alcóolatras Anônimos, mas conseguiu se safar dando R$ 15 para o policial. Quando ele me contou, disse: Pimentel, eu fiquei com pena dele. É muito pouco dinheiro. Para mim, não teve dor de cabeça, deixei de pagar uma multa de R$ 400.
A nossa cultura é assim, as pessoas não sabem que estão fazendo mal. Uma vez eu dei uma idéia para o professor Luiz Eduardo que achou-a, bem…um tanto pesada. Minha idéia era espalharmos cartazes nos ruas com os dizeres não dê dinheiro ao policial, você está cometendo um crime. Boa parte da população não sabe disso. As pessoas contam histórias em rodas de cerveja como se fossem fatos engraçados. Talvez os cartazes desmoralizassem um pouco a classe policial, mas nós frisaríamos também que nem todos os policiais aceitam propina.  


O que aconteceu depois que o senhor foi para o 2º Batalhão? 
CR – Eu fiquei no 2º BPM uns cinco, seis meses. Mas o que aconteceu? Comecei a ser procurado por policiais recém-formados, muitos já da Era Garotinho.
Capitão, o senhor é das operações especiais…dá aula de tiro, né? É que a gente não aprendeu a atirar no curso. Cada um deu uns 10 tiros apenas. Eu achei que eles estavam brincando comigo e comecei a azer uma enquete entre os policiais. No máximo, achei um que tinha dado 20 tiros, o que e irrisório. Como alguém pode ser formar na polícia com 20 tiros?  


Você está falando de tiro de revólver? 
CR – Revólver. De fuzil nunca deu tiro. Nem de calibre 12, nem de fuzil, nem de submetralhadora. Eu cheguei para o comandante geral e relatei que os policiais estavam se formando simplesmente sem dar tiros. O instrumento de trabalho de um fotógrafo é a sua máquina, certo? O do policial é a arma. E ele não sabe usar o instrumento de trabalho dele. Alguns tinham humildade de dizer isso para mim e queriam ter aula. 
Só que a polícia não tinha munição para as aulas. Aí eu resolvi passar aquilo para a imprensa, para uma amiga da TV Bandeirantes. Muita coisa fui eu que passei mesmo, mas ela foi a campo também. O problema e que depois puseram tudo na minha conta. Aí me mandaram para Itaperuna, 29 BPM, extremo noroeste do estado, o lugar mais longe que você pode imaginar. Ainda me deram 20 dias de cadeia, antes mesmo de provar que tinha sido eu que tinha passado as informações para a imprensa. 
A PM comprou dois mil fuzis M 16 desses americanos e os policiais não deram um tiro sequer. Estão usando a arma na rua colocando em sério risco de vida a população fluminense. Se eu tenho medo quando vejo um policial com fuzil na rua, imagine a população. 

Uma imagem comum em filmes americanos é a do policial praticando tiros na delegacia. Isso então não acontece no Brasil? 
CR – Lá acontece, aqui isso não existe. Um policial americano dá 200 tiros por mês. Eu conheço muito Nova York. O prefeito Rudolph Giulliani mandou recolher todas as pistolas dos policiais e deu para eles revólveres. Agora vocês só vão poder voltar a usar pistola quando passarem por uma prova de pistola, avisou. A tal prova era dificílima. Os policiais só passavam na terceira, quarta tentativa. Em Nova York hoje maioria já usa pistola, mas você ainda vê uma parte usando revólver. 
Eu conheci um policial do 16º BPM que foi acusado de matar uma menina com um tiro no pescoço numa casa na Penha. Ela estava brincando dentro de casa, tomou o tiro e morreu. Ele perseguia um Tempra com quatro marginais e atirou no carro. A menina morreu do lado de lá. Logicamente ele não atirou na menina, ele mirou no Tempra. A família ficou muito chocada e acusou a polícia de omissão de socorro, porque foram atrás do Tempra e não socorreram a menina. O policial me procurou porque sabe que gosto desses assuntos e me contou:  capitão eu não sei se fui eu que acertei a menina, mas eu efetuei 20 disparos. Perguntei para onde ele tinha apontado. Para o carro com os marginais. Pedi para dar uma olhada na ficha de tiro dele – é uma ficha que todo policial tem que controla quantos tiros ele deu no ano, quando esta em instrução. Pois bem, ele estava há cinco anos sem aula de tiro – e ele tinha simplesmente cinco anos de policia!
É uma irresponsabilidade tão grande, aí você vê: Delegacia Legal, é tudo mentira – ele prometeu 200 e só tem 14. Gtam, Blazer, fuzil, Nova Polícia… É tudo mentira! Eles não mexeram nos pontos cruciais, que é salário, que mexe com auto estima; instrução policial e qualificação profissional. Se você não fizer isso, não tem Nova Polícia.  


Você cansou de ser PM?
CR – Cansei. Porque hoje você não tem perspectiva de que isso vai melhorar. Só piora a cada ano que passa. Antigamente, nós formávamos um sargento em um curso de um ano de duração. Você tirava um homem do quartel, levava para um centro de informação e ele ficava um ano tendo aula até virar sargento. Era um policial melhorado. Hoje em dia o curso de sargentos tem três meses de duração com aulas dia sim, dia não. E na ativa. Até cinco anos atrás era assim. Hoje em dia você vê o quanto o coronel Nazareth Cerqueira investiu em instrução. Esse grupamento de favela no Pavão/Pavãozinho é idéia dele. O que você tem de bom hoje é resquício da época dele. As escolas funcionavam, os centros funcionavam. O salário é que sempre esteve ruim. Nunca teve bom salário, não. Mas o que você tinha de bom acabou. Você vive só de fachada: Nova Polícia, boina azul, Blazer. E você sabe que quando esse governo acabar, essas coisas acabam.  


Depois dos 20 dias de prisão em Itaperuna, o que aconteceu?
CR – Bem, aí eles me negaram o direito às férias. Eu tinha férias para dezembro do ano passado, mas me disseram que eu estava respondendo a inquérito e não podia tirar férias. Eu li a legislação e lá não diz nada disso. Porque um inquérito pode durar, sei lá , até uns dois anos.
Então entrei com um mandado de segurança para poder tirar férias. O juiz da 3ª Vara de Fazenda Pública me deu o mandado e entrei de férias por decisão judicial. Em seguida entrei com outro mandado para cancelar minha ida para Itaperuna. O Batalhão de lá tem hoje um número de capitães maior do que comporta. Tem vaga para seis capitães e comigo tinham nove. Há 11 anos o quartel de lá não recebia ninguém por motivos políticos. Era uma prática fora de moda. Apesar de todos os oficiais de lá serem meus amigos a recepção foi ruim. Disseram que estavam chateados por eu estar lá, porque aquilo mostrava o que o comandante achava do batalhão: que era um lugar de renegados.  


E o senhor acabou voltando para onde? 
CR – Para a geladeira de novo. Mas eu já tinha feito o pedido de demissão. Esses pedidos demoram bastante para serem publicados, é um negócio bastante burocrático. Eu entrei com o pedido na segunda-feira da semana passada e na sexta-feira ele já estava deferido e publicado. Você tem que pedir uma junta médica, que leva uns 15 dias para expedir um laudo. A junta foi convocada em   caráter extraordinário e quando cheguei lá já estavam prontos para me avaliar. Eu passei na frente de umas 200 pessoas. 


Muitos policiais estão pedindo para sair da PM? 
CR – Estão. O soldado, principalmente, entra para a polícia para ganhar R$ 400 até terminar uma faculdade e arrumar um emprego melhor. A gente perde policial para ser carteiro. Eu já perdi um soldado que foi trabalhar como trocador de ônibus. Ganha mais e é menos arriscado. Aquilo me deu raiva. Em nenhum lugar do mundo alguém abandona a polícia para ser trocador de ônibus.


 Agora, quais são suas perspectivas profissionais? 
CR – Montei uma equipe com mais dois amigos e comprei um equipamento israelense. Estou fazendo ações preventivas e repressivas anti-grampo para empresários. Bloqueadores de sinal de celular por exemplo. Você está aqui numa reunião e não quer que ninguém te interrompa. O aparelho bloqueia o sinal num raio de 20 metros e não tem como ligar. Para você bloquear  uma penitenciária, custa uns US$ 10 mil e o Desipe não comprou nenhum equipamento desses até hoje. 

O senhor teme represálias? 
CR – Não. Honestamente não. Porque acho que as coisas que eu falo encontram eco na tropa. O Bope foi mandado para a praia uma certa época e meus soldados queriam levar os fuzis com ele. Eu perguntava a gente vai atirar na praia em algum marginal? Tiro de fuzil é letal até 2.800 metros. Se você errar o tiro no Posto 6 vai acertar alguém que está com a família no Posto 2. E o policial invariavelmente erra, porque está sem aula. 


Qual o tamanho da banda podre da polícia hoje? 
CR – Olha, é pesado demais isso aí, vai embolar…olha…eu confio em metade dos policiais. Metade deles é de confiança. Mas eu diria que a maioria dos delitos não sejam delitos tão…bem, tudo é grave, né? Mas eu diria que são pequenas extorsões. Dinheiro de bicheiro, dinheiro de van, essas coisas.


Alem da empresa de segurança, o senhor pretende trabalhar com o professor Luiz Eduardo Soares em Porto Alegre
CR – Eu me ofereci para trabalhar com ele, mas não foi feito nenhum convite oficial. Tem um concurso que eu vou fazer na Uerj agora em março, para uma pós-graduação em Sociologia Urbana. Estudei Direito três anos mas chutei o pau da barraca. Direito não tem nada a ver com policial, é para advogados. Policial precisa saber o que  é crime e só. Acho mais importante estudar os problemas da sociedade.

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